Bahia

CULINÁRIA

“Mancha de dendê não sai" 

Dendezeiro é símbolo de religiosidade, força e resistência negra africana no Brasil

Salvador (BA) |
O dendezeiro ocupa um papel fundamental no processo de construção das várias visões de mundo iorubás. - Zineb Benchekchou/Embrapa

Podemos dizer que o dendê é uma das marcas da culinária baiana. Difícil encontrar quem não goste de uma moqueca ou um acarajé quentinho. Em Salvador, nas sextas-feiras, é possível sentir de longe o aroma do “azeite de cheiro” que tempera e colore a ‘comida baiana’ nos restaurantes. Mas qual a origem do dendezeiro,  “Elaeis guineensis” ou Igi Ope em iorubá, e do azeite de dendê?

O Babalorixá, antropólogo e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Vilson Caetano de Sousa Júnior, explica que não tem como falar do dendezeiro e não remontar o tráfico de africanos para o Brasil a partir da segunda metade do século XVI. “Provavelmente, o azeite de dendê começou a ser importado para o Brasil juntamente com os africanos. O homem africano, a mulher africana, tinham vontades, e graças a essas vontades, houve o comércio não apenas de plantas, sementes, bebidas, especiarias, mas de tecidos e outros produtos que faziam parte de sua vida. Então o azeite de dendê chega no Brasil para atender exigências dessa população africana”.

O professor ressalta que o dendezeiro ocupa um papel fundamental no processo de construção das várias visões de mundo iorubás.“O dendezeiro vai estar no mito fundante de várias sociedades iorubás. Onde vão contar a criação do mundo ou a expansão do império de Oyó, a partir do dendezeiro, que representa uma árvore sagrada na qual você conta a história do mundo a partir dela”.

Vilson Caetano diz ainda que entre os usos está na construção, combustível, alimentação, cosméticos e também para proteger do mal. “Além do que é usado na culinária, para fazer vela, sabonete, possui ‘mil e uma utilidades’. Eu acho que é muito feliz um trabalho que eu tenho junto a uma comunidade quilombola de maragogipe, chamado “Dendezeiro: a planta de onde se tira de tudo. O óleo do fruto do dendê, chamado de xoxó, os africanos sempre usaram como cosméticos, no cabelo e passando no corpo, não apenas para o corpo não ficar ressecado, mas para proteger do mal, proteger de doenças e dos maus espíritos”.

Ele afirma que, por ser símbolo da identidade, no processo de desconstrução das identidades negras, o dendê foi primeiramente relacionado a causa de doenças, como por exemplo em teses produzidas pela Faculdade de Medicina da Bahia, e depois associado ao demônio. “Na década de trinta os terreiros de candomblé eram chamados de baixo espiritismo, o ‘baixo espiritismo’ se contrastava com o ‘espiritismo’ pela presença do azeite de dendê. Por isso se tem a expressão ‘mesa branca’.Uma mesa onde o azeite de dendê estava ausente, onde não tem os orixás, tem somente o copo de água, a vela e os chamados espíritos de luz”.

Segundo Vilson, tudo que era associado ao dendê com o passar do tempo foi sendo demonizado, como por exemplo o orixá Exu . “O dendê é o elemento, por excelência, do orixá Exú, orixá do princípio da comunicação, que foi mau compreendido e demonizado, que recebe título de Elepô, Ele = Senhor, Epô= azeite de dendê, ele é o Senhor de Epô, o Senhor do azeite, porque o azeite é o grande combustível que faz o fogo e ilumina. Dentro da cozinha de santo o azeite de dendê vai ter uma função primordial”.

O fato é que o dendê é uma marca da culinária baiana, como afirmado por nomes como Gilberto Freyre, Edson Carneiro, Câmara Cascudo, que identificaram a cozinha baiana como uma cozinha colorida, marcada pelo vermelho alaranjado do azeite de dendê. “Acho que tem um afirmativo muito interessante, a ideia de que ‘mancha de dendê não sai’. Ao mesmo tempo que esse dendê passou por um processo de demonização, ele é imperativo porque ele realmente faz parte das nossas vidas, ele não está somente na nossa culinária, está realmente entranhado na nossa vida, sobretudo nas nossas visões de mundo’.

“Dendê é símbolo de religiosidade negra africana no Brasil, de força, de empoderamento. É símbolo sobretudo de luta e resistência de nós, homens e mulheres negros, que ao longo da história contamos e recontamos a nossa história a partir da presença desses reis e rainhas que nos deixaram vários legados, e dentro desses legados está essa visão de mundo que iniciei contando, representada por essa planta e que hoje faz parte de nosso cenário nacional e de nossas vidas”, conclui o Babalorixá.

Dendê: poder da transformação e o colorido da vida
A atriz e professora Maíra Guedes, fala sobre a importância do dendê em sua vida. “Dendê pra mim, nesse momento da vida, é o poder da transformação. Me lembra o fogo, a energia da vida. O borbulhar do dendê fritando, por exemplo, um bolinho de acarajé, me lembra um vulcão em erupção bem capaz de destruir coisas. E ao mesmo tempo, pode transformar o alimento, coisas que parecem tão bobas, tão insossas, se fritas no dendê, nossa senhora, vira uma maravilha”, pontua.

Além de símbolo de luta e resistência ancestrais, o aroma e o gosto do dendê provocam memórias em quem sente o cheiro ou consome. ‘Para Maíra, a memória afetiva que tem quando usa o dendê para cozinhar é de festa, de reunião. “Sempre penso em muita comida e muita gente, nos encontros mesmo, os rituais como aniversários e coisas que a gente quer fartura. Sempre penso em gente pra comer comigo, em fazer panelas enormes, não se faz vatapá pouco, não sei fazer caruru pouco. Comida de dendê, comida de Epô como se chama lá na roça, é fartura e é o colorido da vida”, finaliza.

Edição: Elen Carvalho