Coluna

Denúncia contra Lula e Boulos prepara o terreno para mais perseguição política

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Manifestantes ocuparam o apartamento por menos de quatro horas - Reprodução/Twitter
A sanha punitivista, perseguidora e artífice do lawfare precisa ser urgentemente combatida no Brasil

O Ministério Público Federal (MPF) na cidade de Santos, São Paulo, denunciou o ex-presidente Lula e Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, além de outros três membros do próprio MTST, pelo fato que ficou conhecido como “invasão do tríplex do Guarujá”, o qual se deu em 16 de abril de 2018, no rescaldo dos protestos contra a prisão ilegal impingida pela Operação Lava Jato ao ex-presidente.

Para escapar da acusação de que teria denunciado Lula por invadir seu próprio apartamento, o que, pela lógica, não seria juridicamente possível, o procurador da república responsável pela acusação, a qual, aliás, desarrazoadamente tramita sob segredo de justiça, recorreu a um tipo penal quase totalmente desconhecido, insculpido no artigo 346, do Código Penal, que diz que é crime “tirar, suprimir, destruir ou danificar coisa própria que se acha em poder de terceiro por determinação judicial ou convenção”, com pena prevista de 6 meses a 2 anos, e multa.

Trata-se, claro, de mais uma evidente ocorrência do que se convencionou chamar de “criminalização dos movimentos sociais”, já que, como amplamente se noticiou, o que se deu naquele dia foi uma ocupação pacífica do tal tríplex, não tendo havido qualquer dano, destruição, supressão ou retirada de nada dali.

Isso sem falar da flagrante perseguição contra Lula e Boulos, que sequer estavam presentes na ocupação. Eles foram denunciados por perseguição política e para intimidação de outras lideranças de movimentos sociais, como se o Ministério Público estivesse a dizer que estas devem ficar cabreiras e quietas, sob pena de virem também a ser alvo de procuradores da república e promotores de justiça adeptos do lawfare punitivista.

Para além disso, o caso em questão faz lembrar que aquilo que geralmente ocorre nesse tipo de ação de movimentos sociais, principalmente quando se dá em áreas rurais, levadas a cabo pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), por exemplo, é que centenas de pessoas ocupam pacificamente propriedades improdutivas, descumpridoras, portanto, da função social da terra, conforme prevista na Constituição Federal, e acabam sendo alvos de mandados de reintegração de posse dados liminarmente pelos juízes.

Quando se dá em meio urbano, a situação não é diferente, pois imóveis abandonados também descumprem, nesse casos, a função social, conforme prevista no Estatuto das Cidades.

Isto é, os juízes acatam os pedidos de despejo ajuizados pelos proprietários e mandam as pessoas saírem dos imóveis, sem maior discussão ou tentativa de conciliação.

O problema é que, muitas vezes, aquelas pessoas estão ali há mais de ano, não tendo nenhum lugar para ir quando despejadas, o que agrava o problema da exclusão social, já que as cidades passam a ter mais desabrigados, sem proteção alguma por parte do Estado.

Não é que não se possa ser dono de uma “casa fechada” ou de um imóvel rural de pouca produção, claro, mas se faz necessário que o Estado observe a necessidade de quem não tem onde morar ou plantar o que comer, pelo que é imprescindível fazer cumprir a função social da propriedade, conforme parâmetros razoáveis e proporcionais.

Seguindo-se aos despejos, o que se vê é justamente o que ocorreu contra Lula e Boulos, ou seja, escolhe-se lideranças dos movimentos, geralmente as que dão entrevistas e têm maior apelo midiático, e que acabam denunciadas criminalmente pela prática de dano, furto, incêndio e até roubo, por exemplo.

Do ponto de vista do Direito, são denúncias ineptas, que não individualizam condutas ou minimamente apresentam provas capazes de apontar quem, em tese, teria praticado os ilícitos relatados.

Dizendo de outro modo: no calor de um despejo, quando mais de 200, 300 pessoas estão desesperadas, muitas vezes sendo agredidas por alguns maus policiais e capangas dos proprietários que participam da ocorrência, como é possível dizer quem seria responsável por ter praticado algum dano específico?

É aí onde reside a falta de individualização de conduta, a qual, após as respectivas instruções criminais, onde testemunhas ratificarão essa impossibilidade de individualização, redundará na absolvição dos acusados, em boa parte dos casos.

À essa altura, porém, o estrago já está feito: terá se denunciado sem provas pessoas inocentes que, ao fim e ao cabo, ficaram marcadas pelo injusto, mesmo que posteriormente absolvidas.

Guardadas as devidas proporções, é o que se vê no caso da denúncia de Santos: tal como se dá contra lideranças de menor destaque, em âmbito estadual ou municipal, o que se passa contra Lulas e Boulos é puramente uma tentativa de atingi-los moralmente , já que o processo seguirá rumo ao reconhecimento de que não houve a prática ineptamente impingida pelo Ministério Público aos denunciados.

Este é um cenário, apesar da pouca chance de êxito do MP, que preocupa bastante, pois a sanha punitivista, perseguidora e artífice do lawfare precisa ser urgentemente combatida no Brasil, sob pena de vingar ainda mais o autoritarismo sob o qual ora vivemos em tempos bolsonaristas.

 

* Olímpio Rocha é advogado, professor e membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Estado da Paraíba.

Edição: Leandro Melito