Paraná

ENTENDA O CONFLITO

Especialista aponta contradições na postura dos Estados Unidos em relação ao Irã

Professor de relações internacionais afirma que estadunidenses ignoraram abertura à negociação

Brasil de Fato I Curitiba (PR) |
"Assim, temos que entender o Irã como um país diferente: persa e xiita num mar de países árabes e sunitas"
"Assim, temos que entender o Irã como um país diferente: persa e xiita num mar de países árabes e sunitas" - Nikolas Prado

Andrew Traumann leciona História das Relações Internacionais na Faculdade Unicuritiba, na capital paranaense. Estudioso do Irã há vinte anos, ele conversa com o Brasil de Fato sobre a repercussão após o contra-ataque iraniano contra duas bases estadunidenses e após o pronunciamento de Trump. Na avaliação dele, a resposta militar iraniana teve peso para garantir momentânea estabilidade na região: “Os futuros enfrentamentos tendem a ser indiretos. Algum atrito no Iêmen, na Síria, esses devem continuar. Um enfrentamento direto seria desastroso para toda a região, pois o Irã não hesitaria em atacar Israel, que certamente revidaria, o que levaria a um conflito generalizado em toda região, causando danos humanos e econômicos impensáveis”, afirmou. Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato. Na sua opinião existe alguma justificativa para uma intervenção que os EUA vêm sinalizando desde antes de 2018?

Andrew Traumann. Antes de mais nada, gostaria de fazer um breve recuo histórico. Para entendermos a geopolítica do Oriente Médio é necessário compreender que a região é formada por diversos grupos étnicos, especialmente entre os muçulmanos. A primeira confusão nesse debate é achar que todo o muçulmano é árabe. Mas não, apenas 18% dos muçulmanos são árabes. Os persas, os turcos, há várias etnias não árabes que são muçulmanas. O Irã é um país persa e o Império Persa foi um dos maiores da Antiguidade. Mesmo islamizados, os persas jamais abriram mão de seu orgulho e de seu nacionalismo. Há inclusive estudiosos que afirmam que os persas se voltaram ao ramo xiita do islamismo como forma de resistência ao expansionismo árabe, como se dissessem: “aceitamos sua religião, mas escolhemos um segmento que tem mais a ver com a nossa identidade”. Assim, temos que entender o Irã como um país diferente: persa e xiita num mar de países árabes e sunitas. Durante o governo do Xá Reza Pahlevi, o Irã era um país totalmente alinhado aos EUA, mas tal cenário muda a partir da Revolução Iraniana de 1979, quando passa a haver uma postura de enfrentamento com os EUA e com Israel. Após a tomada da embaixada norte-americana em Teerã, EUA e Irã rompem relações diplomáticas, situação que se mantém inalterada até hoje. O Irã passa então a ficar isolado, sofre embargo do mundo inteiro e encontra aliados na Síria e no Líbano. Neste último, com um grupo xiita criado com ajuda iraniana, chamado Hezbolah, formando o que muitos estudiosos chamam de “Arco Xiita” ou “Arco da Resistência”, pois esse trio resiste à hegemonia na região representada por Arábia Saudita, EUA e Israel.

A reação do Irã com os bombardeios, em resposta ao assassinato do general Soleimani, e um discurso mais ameno de Trump no dia seguinte, podem representar um equilíbrio momentâneo para a situação?

O ataque do Irã como a resposta ao Trump mostra essa distensão, arrefecimento da situação, parece que ambos estão satisfeitos. Afinal, o Irã respondeu. No fundo, nenhum dos dois tem interesse num conflito aberto. Mesmo que o ataque estadunidense tenha sido mais violento, matando o General Soleimani, o fato é que o Irã contra-atacou e não foi retaliado. Ao contrário, Trump está falando em diálogo com o Irã. Digamos que ambos estão satisfeitos com o empate.

Analistas se debruçam muito neste momento se pode haver ou não enfrentamentos diretos entre os dois países, envolvendo inclusive China e Rússia.

Acho interessante a gente destacar aqui que os futuros enfrentamentos tendem a ser indiretos. Algum atrito no Iêmen, na Síria, esses devem continuar. Um enfrentamento direto seria desastroso para toda a região, pois o Irã não hesitaria em atacar Israel, que certamente revidaria, o que levaria a um conflito generalizado em toda região causando danos humanos e econômicos impensáveis.

Qual é o impacto do embargo econômico que o Irã vem sofrendo?

Não é tão severo como o embargo a Cuba, por exemplo, mas é muito complicado no que se refere à importação de peças para carros, aviões, vários tipos de tecnologia têm muita dificuldade para entrar no Irã. Os aviões também são muito antigos e há dificuldade em adquirir novas aeronaves. O embargo atinge principalmente o setor automotivo, petroleiro e bancário para isolar o país no sistema internacional e forçá-lo a negociar. O Acordo P5+1 causou um certo alívio na economia iraniana ao liberar fundos do governo congelados na Europa e EUA há quase 40 anos.

O atual presidente, Hassan Rouhani, desde 2014 sinaliza abertura às negociações, participou do Grupo 5 + 1. Neste sentido, a posição hostil dos EUA soa contraditória.

Em 2010, o Brasil participou de acordo com o Irã, Brasil e Turquia. O ex-chanceler Celso Amorim intermediou, e basicamente o que a União Europeia estava querendo era uma troca simultânea na qual o Irã entregaria 1200 quilos de urânio a 3,5% de enriquecimento e receberia 120 quilos enriquecidos a 20%, só que a troca seria feita pela França, e o Irã não confiava na França. Então, Brasil e Turquia convenceram o Irã a aceitar a intermediação turca. No entanto, o acordo acabou não sendo levado em consideração pelo governo Obama e mais sanções foram impostas a Teerã. Mais tarde, o Acordo 5 + 1 foi muito mais duro para o Irã, pois o máximo de enriquecimento permitido era de 3,5%. Note que, para se construir uma bomba atômica, é necessário possuir urânio enriquecido a 90%. A acusação norte-americana e de Israel é que o governo iraniano estaria utilizando os fundos recém-liberados para desenvolver clandestinamente seu programa nuclear. No entanto, não há nenhuma informação consistente nesse sentido, tanto é que os demais países membros do Acordo 5+1 (Grã-Bretanha, Alemanha, França, Rússia e China) permaneceram apoiando o acordo.

 

Edição: Frédi Vasconcellos