Paraná

NECROPOLÍTICA

Policiais brasileiros: trabalhadores em construção

No Brasil, policiais atuam como protetores do Estado, enquanto vivem condições de trabalho desgastantes

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
Desde 2016, policiais se organizam nacionalmente tendo como uma de suas principais lutas a construção da categoria enquanto trabalhadores
Desde 2016, policiais se organizam nacionalmente tendo como uma de suas principais lutas a construção da categoria enquanto trabalhadores - Eduardo Saraiva/Fotos Públicas

No último dia 4, uma operação de guerra foi instaurada nos arredores da Ópera de Arame, em Curitiba. Um efetivo policial de 800 agentes, 60 viaturas e um helicóptero estavam disponíveis para atuar ao longo do dia. O motivo: a votação da Reforma da Previdência estadual aconteceria ali, e os servidores públicos, principais interessados, estavam proibidos de se aproximarem do local.

Os policiais eram, assim, a única categoria de servidores públicos “permitida” a presenciar a votação. Porém, diferente dos demais servidores que protestavam contra as ilegalidades da votação e o próprio projeto da Reforma, os policiais faziam, ali, o papel de proteger o Estado.

“A polícia foi colocada nessa situação, como se tivesse um embate e ela tivesse que defender o Estado contra os manifestantes. Muitas vezes, a polícia é colocada para fazer uma parte repressiva que não lhe cabe”, afirma Martel Alexandre del Colle, Policial Militar aposentado e coordenador do movimento Policiais Antifascismo no Paraná.

Del Colle lembra que os governos paranaenses têm um “histórico de não lidar bem com manifestações, não conseguir fazer um diálogo democrático”. Ele usa como exemplo o “massacre de 29 de abril de 2015”, em que a Polícia Militar do Paraná realizou uma das operações mais violentas da história. No dia, a PM atacou com gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral e balas de borracha milhares de pessoas que protestavam contra mudanças no regime previdenciário de professores e funcionários de escolas. Mais de 200 pessoas ficaram feridas.

O estado era governado por Beto Richa (PSDB) e a ação policial foi coordenada pelo então secretário de segurança pública estadual Fernando Francischini (PSL). Atualmente, o Paraná é governado por Ratinho Júnior (PSD) e tem como secretário de estado da segurança pública o coronel Rômulo Marinho Soares.

Segundo o PM aposentado, em situações como essas, policiais agem com a “pressão de defender um lado”, quando, na verdade, deveriam agir como intermediários. “Apesar de o governador ter uma coordenação sobre a polícia, ele não pode ultrapassar a lei. A polícia não pode fazer o seu papel baseado em quereres de autoridades, ela tem que cumprir a lei”, afirma del Colle.

Estrutura do Estado brasileiro

A violência policial não é exclusividade do estado do Paraná. Na primeira semana de dezembro, a Polícia Militar de São Paulo foi protagonista de uma ação sangrenta em um baile funk na favela de Paraisópolis, que deixou nove mortos e pelo menos outras 20 pessoas feridas. Já no Rio de Janeiro, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ), de janeiro a março deste ano, as Polícias Militar e Civil do estado mataram 434 pessoas. Número recorde dentro de uma série histórica de 21 anos. Estatisticamente, por dia, foram quase cinco pessoas mortas (4,82) por ação policial no Rio de Janeiro.

No Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os autores Elisandro Lotin de Souza e Micheline Ramos de Oliveira inserem a categoria policial dentro de um esquema complexo de manutenção de uma ideologia de Estado. A ação que se vê nas ruas é construída desde a formação desses profissionais, que segue uma lógica desumanizadora, de fabricação de “quase máquinas”.

“O papel designado para os policiais nas agendas atuais de políticas públicas tem sua origem numa formação pautada na disciplina corporal, psíquica e moral, o que torna esses profissionais resignados às regras advindas de seus superiores, sejam elas quais forem, já que, aqui, a ordem hierárquica é intransponível”, escrevem os autores.

Integrante da coordenação nacional do movimento Policiais Antifascismo e delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Orlando Zaccone concorda com a tese da publicação do FBSP, ao afirmar que não existe uma “ideologia policial”, mas sim uma ideologia de Estado que rege a atuação policial.

“Existe um poder jurídico na estrutura do Estado brasileiro que legitima essa matança. A gente não pode pensar que toda ação violenta do policial é desvio. Desde que o alvo esteja definido como 'matável', não é desvio de função. O policial é jogado para cumprir funções violentas”, diz.

Não é preciso ir muito longe no tempo para lembrar que tais “funções violentas” foram discursos de políticos eleitos nas últimas eleições. João Dória (PSDB), governador de São Paulo, por exemplo, afirmou, em entrevista à rádio Bandeirantes, em outubro de 2018, que a polícia do estado “atira e atira para matar". Já o governador Wilson Witzel (PSL), do Rio de Janeiro, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em novembro de 2018, disse que "a polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e...fogo! Para não ter erro". Eleito pelo mesmo partido de Witzel, o presidente Jair Bolsonaro também baseou sua campanha em gestos de arma com as mãos e discursos de violência, falando em “fuzilar a petralhada” e “varrer do mapa os bandidos vermelhos”.

Zaccone lembra, ainda, que, majoritariamente, os alvos definidos como “matáveis”, são negros, moradores de favelas ou regiões periféricas dos grandes centros urbanos. “No Brasil, essa violência tem uma característica própria, que é da formação das polícias dentro de um modelo de sociedade que tem nas suas origens o racismo institucionalizado, o racismo estrutural. Nós estamos falando da estrutura do Estado brasileiro, da sociabilidade brasileira. Isso transpassa as instituições policiais”, explica.

Entre o herói e o bandido, o trabalhador

Ainda no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, Elisandro Lotin de Souza e Micheline Ramos de Oliveira escrevem que “a barbárie estabelecida se traveste no estrangulamento de policiais pelo próprio sistema que os produz, o adoecimento torna-se eminente”.

Dados da mesma publicação mostram que a taxa de suicídio entre policiais aumentou 42,5% em comparação a 2017. No último ano, 104 policiais brasileiros cometeram suicídio, número equivalente a dois policiais mortos por semana. Em comparação, também no último ano, 87 policiais foram vítimas de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI).

No Paraná, 14 policiais (civis e militares) foram vítimas de CVLI, enquanto 21 policiais cometeram suicídio. A taxa de suicídio na categoria, no estado, aumentou 37,5% nos últimos dois anos.

O delegado Zaccone explica que foram construídas no imaginário da população dois estereótipos policiais: o do bandido, corrupto, e o do herói da nação, que está em uma luta do “bem contra o mal”. Para o delegado, ambos os estereótipos são nocivos para a categoria, uma vez que a coloca em posição “descolada” dos demais servidores públicos.

“Entre ser bandido e herói, os policiais vão correr para onde? Só que o discurso do herói é tão prejudicial ou mais. Primeiro porque ele [policial] se desconstrói como trabalhador. O herói não precisa de salário, não precisa reivindicar melhores condições para o seu trabalho”, explica Zaccone, complementando que é também uma estratégia ideológica do Estado reforçar a concepção do policial enquanto herói da nação.

“A construção do discurso do herói cai muito bem para a relação do Estado com esses policiais, que continua mantendo a grande maioria deles na subcidadania. E nós temos a ilusão de que o policial que está nessa condição de subcidadania ainda vai respeitar direitos fundamentais de outros cidadãos”, questiona o delegado. Zaccone lembra que a categoria segue regras que a diferencia das demais, como a proibição do direito à sindicalização e a submissão a um rígido estatuto disciplinar.

Construir a concepção do policial enquanto trabalhador é uma das principais lutas do movimento Policiais Antifascismo, surgido em 2016, e organizado nacionalmente, com coordenações estaduais. Atualmente, 15 estados nas cinco regiões do Brasil estão organizados com coordenações estaduais do movimento.

“Um policial deve ser construído como trabalhador para que ele possa se reconhecer na luta dos trabalhadores e se reconhecer como os demais trabalhadores”, afirma Zaccone. 

 

Edição: Pedro Carrano