Paraná

No paraná

Justiça determina que governo destine R$ 23 milhões para titulação de quilombo

Liminar favorável a Paiol de Telha estabelece prazo de 180 dias para o repasse

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
Declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre a questão quilombola também trazem mais incertezas
Declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre a questão quilombola também trazem mais incertezas - Terra de Direitos

Aos 85 anos, Domingos Gonçalves Guimarães já perdeu as contas de quantas vezes saiu da cidade de Reserva do Iguaçu, a 350 km de Curitiba, para vir até a capital paranaense para cobrar a titulação do Quilombo Invernada Paiol de Telha.

Mas toda a luta que Domingos travou junto com outras famílias da comunidade quilombola está perto de uma primeira importante vitória: no dia 25 (segunda), a Justiça Federal determinou que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) deve titular 225 hectares já adquiridos pelo Instituto até o dia 2 de maio. Caso descumpra esse prazo, a autarquia deve pagar uma multa de R$ 600 mil reais por dia desrespeitado. O Incra adquiriu a área que pertencia à Cooperativa Agrária no início do ano, mas ainda não repassou, em cartório, o título à associação quilombola, como determina o Decreto Federal 4887/03.

A decisão liminar foi dada pela juíza Silvia Regina Salau Brollo, da 11ª Vara da Justiça Federal, após a falta de acordo em audiência de conciliação. A decisão faz parte da Ação Civil Pública movida pela comunidade quilombola contra o Incra e a União, para cobrar a titulação imediata de parte do território tradicional e a apresentação de um cronograma para titulação do restante da terra.

Na liminar, além de determinar a titulação, em 30 dias, de duas das sete áreas que já possuem decreto de desapropriação, a juíza Silvia Brollo também estabelece o prazo de 180 dias para que a União libere para o Incra o valor necessário para que sejam adquiridas as outras cinco áreas restantes, já declaradas de interesse social para desapropriação pela Presidência da República em 2015. O Incra e a União podem recorrer da decisão.

Documento em mãos

Presidente da Associação Pró-Reintegração Quilombola Paiol de Telha Fundão-Heleodoro, João Trindade Marques comemora a decisão. “Está todo mundo muito contente. Se Deus quiser dia 2 de maio nós vamos ter o documento em mãos”.

Quilombola do Paiol de Telha e coordenadora executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Ana Maria dos Santos Cruz se diz aliviada por ter um indicativo de prazo para a titulação da terra. “A gente sai com mais confiança, que nós não estamos nessa luta toda há 40 anos em vão. A gente pode dizer para esses jovens que estão vindo agora que nós lutamos e conseguimos”, se emociona. Para ela, agora é possível visualizar a possibilidade de titulação da maior parte da comunidade. “Saio com mais confiança para lutar pela outra área”. 

Racismo institucional

Primeira comunidade quilombola reconhecida pela Fundação Cultural Palmares no Paraná, o Quilombo Paiol de Telha tem reconhecido pelo Incra uma área de 2,9 mil hectares. No entanto, apenas 1.434 hectares foram previstos no Decreto Presidencial de Desapropriação assinado em junho de 2015 pela então presidenta Dilma Rousseff. Esse decreto é o procedimento que autoriza que o Incra vistorie, avalie e adquira a área. Após a aquisição, o Incra deve transferir o título da terra para a associação quilombola.

Em janeiro deste ano, o Incra adquiriu – com recurso disponível desde o fim de 2017 – 225 hectares da terra. Agora, resta apenas que, encerrado os procedimentos administrativos, o presidente do Incra, o general Jesus Corrêa, autorize a transferência do título da terra para a comunidade.

Além de estabelecer um prazo para que esse procedimento se encerre, a juíza também destaca a necessidade de garantir que mais terra seja transferida a Associação – afinal, 225 hectares seriam insuficientes para a sobrevivência das mais de 300 famílias que são herdeiras do território.

O Incra argumenta que não é possível garantir a aquisição dos outros 1.200 hectares restantes, por questões financeiras: estima-se que seja necessário cerca de R$ 23 milhões para a compra das outras partes. A Lei Orçamentária Anual sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em janeiro deste ano estabelece apenas R$ 3,4 milhões para a política de titulação de territórios – e desse valor, apenas pouco mais de R$ 400 mil seriam disponibilizados para a aquisição de áreas para todos os 1.176 processos abertos no Incra.

Durante a audiência, a juíza Silvia Brollo destacou que a demora na titulação do Paiol de Telha vai além de um problema financeiro. “Eu entendo que aqui não é uma questão orçamentária, mas de respeito aos direitos constitucionais. [O direito ao território quilombola] Já está na Constituição e eu, como juíza, tenho que respeitar ela”, explica. “Infelizmente o Brasil é realmente um país que não olha para as pessoas que mais precisam. A causa dos quilombolas, assim como dos indígenas, entra em conflito com outros interesses. Não é falta de orçamento, é falta de vontade política de fazer respeitar esses direitos”, reforça.

Presente na audiência, o procurador do Ministério Público Federal Luis Sérgio Langowski também destacou a necessidade de garantir a titulação de toda a área que já está prevista no Decreto de Desapropriação – ainda que a comunidade tenha direito a mais de 1,5 mil hectares que não estão contemplados pelo decreto presidencial. “Os 225 hectares não correspondem nem a 10% da área total do quilombo. A União autorizou a desapropriação de 1.400 hectares. Se autoriza, se pressupõe que tem orçamento”, avalia.

Advogado popular da Terra de Direitos que representa a Associação Quilombola na ação, Fernando Prioste avalia que o baixo valor destinado à titulação dos territórios quilombolas no Brasil é ação de racismo institucional. “De maneira deliberada e sem justificativa técnica, o governo corta o orçamento e destina para outras áreas”. Em cinco anos, o orçamento para a área caiu 97%. Em 2015, o valor destinado ao Incra para titulações foi de R$ 25 milhões. Em 2010, chegou a mais de R$ 54 milhões.

Desafios nacionais

“Não é uma luta fácil”, desabafa a quilombola Ana Maria Cruz. Ela reconhece que a demora no processo não é exclusiva dos servidores do Incra, mas parte da disposição política dos governos. “Nós estamos em um momento muito crítico, de um governo que não apoia os movimentos social, principalmente os pretos e as pretas desse país. A situação é ainda pior em um dos estados mais racistas do Brasil, que é o Paraná”, destaca.

Uma das preocupações da comunidade é a disposição do atual governo com a causa quilombola. Hoje, o Incra está inserido dentro do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e o Secretaria de Assuntos Fundiários do órgão está sob o comando do pecuarista Luiz Antônio Nabhan Garcia, presidente licenciado da União Democrática Ruralista (UDR), entidade de ferrenha oposição a demarcação de terras indígenas e titulação de territórios quilombolas.

Declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre a questão quilombola também trazem mais incertezas ao cumprimento dessa decisão judicial. Em 2017, durante uma atividade no Rio de Janeiro, Bolsonaro chegou a declarar que foi em um quilombo e “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais”. Na época, também disse que, se fosse eleito, não haveria mais “um centímetro demarcado” para indígenas e quilombolas

Além da falta de orçamento destinada a política de titulação, há também a desmonte das estruturas responsáveis por esse trabalho. Ao sancionar a Lei Orçamentária Anual aprovada pelo Congresso Nacional em 2018, Bolsonaro realizou apenas dois vetos: um deles sobre a reestruturação das carreiras do Incra.

Atualmente, 1.716 processos de titulação abertos no Incra. Se o ritmo das titulações permanecer o mesmo – desde a promulgação da Constituição Federal apenas 44 territórios foram titulados -, levará mais de mil anos para que o Instituto encerre todos os processos.

Em audiência do 171º Período de Sessões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), realizada em fevereiro, na Bolívia, comissários da CIDH recomendaram ao Estado brasileiro a criação de um plano nacional de titulação para estabelecer o prazo para titulação de todos os processos abertos.

Edição: Pedro Carrano