Análise

Renan Quinalha: Brasil viverá ofensiva ainda mais forte contra os direitos humanos

No aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, especialista debate cenário de garantia de direitos no país

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Renan Quinalha é advogado e ativista em defesa dos direitos humanos
Renan Quinalha é advogado e ativista em defesa dos direitos humanos - (Foto: Juliano Vieira)

A Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 70 anos nesta segunda-feira (10). O momento é oportuno para se debater o avanço do autoritarismo e os limites das garantias constitucionais no Brasil, às vésperas da posse de Jair Bolsonaro (PSL).

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Para compreender o contexto em que a Declaração foi assinada e suas implicações na atual conjuntura, o Brasil de Fato conversou com Renan Quinalha, Doutor em Relação Internacionais na Universidade de São Paulo (USP) e professor de Direito da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Questionado sobre o futuro presidente, Quinalha garante: "Haverá muito espaço de disputa e de resistência para a rearticulação de uma posição forte na defesa comprometida com os direitos humanos".

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Em que contexto a declaração de Direitos Humanos surgiu? O conceito de direitos humanos se ampliou desde então?

Renan Quinalha: A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi construída e editada em 1948. Ela vem logo depois da Segunda Guerra Mundial, quando houve uma série de massacres, de guerras mundiais. O século 20 começa com muita violência e com muita violação de direitos humanos, então é uma resposta internacional junto com a fundação do sistema ONU [Organização das Nações Unidas], e também é uma ideia de "carta de direitos humanos" que seria compartilhada por todas as nações. [Ela contém] uma espécie de um mínimo de dignidade humana, que contemplaria pessoas em qualquer lugar do mundo, em qualquer um dos estados. Mas ela não funda a ideia de direitos humanos.

Os direitos humanos, na verdade, têm registros já na Antiguidade, mas são as revoluções liberais burguesas, a independência dos Estados Unidos em 1776 e a Revolução Francesa em 1789, que são consideradas as certidões de nascimentos, marcos iniciais dos direitos humanos. Porque ali, nestes dois lugares, Estados Unidos e França, também houve uma declaração de direitos importante, cada um à sua maneira com algumas diferenças pontuais, mas que já garantiam o que a gente vai entender como núcleo central dessa ideia dos direitos humanos. Inicialmente, aparecem como direito à vida, direito à integridade física. É o que a gente chama de direitos civis, que é a ideia de colocar limite a um Estado absoluto, a um Estado que violava direitos, a um Estado que abusava do seu poder contra o cidadãos, e garantir esses direitos fundamentais dos indivíduos, para que eles possam ter uma vida independente, uma vida garantida com dignidade.

Os direitos humanos começam pouco pretensiosamente, com essa ideia de direitos à vida, e isso vai se ampliando durante todo o século 19 e 20, para direitos sociais, econômicos, culturais, e uma série de outros direitos que mudam esse sentido. Se direitos humanos nas revoluções liberais eram tidos como direitos de uma classe burguesa, que tinha seus interesses e que precisava do indivíduo abstrato, que era o indivíduo que fazia contratos, que tinha propriedade, o que vendia sua força de trabalho assalariada, os direitos humanos vão se tornando, com as lutas sociais e políticas, cada vez mais um repertório de toda sociedade e de todos os grupos, sobretudo os grupos vulneráveis.  

Essa declaração foi um divisor de águas na história moderna?

Sem dúvida. Ela é um marco porque engaja os Estados em uma obrigação internacional de garantia desses direitos. Deixa de ser, então, algo de um país ou de outro, como da França, que já tinha sua declaração, ou dos EUA, que já tinha a sua, para ser efetivamente um compromisso internacional de vários estados e de um sistema mundial que começa a olhar para isso.

Havia uma tentação naquele momento de se criar um consenso mundial em torno dos direitos humanos, de um conjunto mínimo de princípios e de direitos que têm que ser assegurado para qualquer indivíduo, em qualquer lugar que eles estiverem do globo. 

Há uma narrativa muito recorrente de relacionar direitos humanos à defesa de "bandidos", de forma pejorativa. Como esse discurso pode ser desconstruído?

Essa simplificação, de direitos humanos como direitos para "bandidos", aparece no Brasil na redemocratização. Ela tem uma história. O discurso de direitos humanos começa a ser usado no Brasil pelas famílias de presos políticos e pelos setores progressistas que combateram a ditadura, para pedir anistia para os presos políticos . Então, se usava o discurso de direitos humanos para se dizer que a ditadura viola os direitos humanos, prende arbitrariamente, tortura. Veja quantas pessoas estão presas sem acusações formais, sem direito de defesa garantido, passaram por torturas, e assim por diante.

Ali, se usa esse discurso dos direitos humanos, e ele repercute muito na sociedade. Já na redemocratização, vai acontecendo um outro processo, porque as condições carcerárias brasileiras, que são péssimas, já naquele momento já eram, e essa ideia dos direitos humanos começa a ser utilizada pra tentar humanizar os presídios. E aí, se fala dos direitos humanos não mais dos presos políticos, mas dos presos comuns que também estavam nos cárceres. Só que, diferentemente dos presos políticos, os presos comuns não eram vistos como pessoas que lutavam por liberdade, contra a ditadura, por um ideal, por um programa político, mas pessoas que cometeram crimes contra o patrimônio, crimes contra a vida. Em vez do discurso dos direitos humanos ajudar a humanizar os presídios para os presos comuns, o que acontece com essa associação é que o próprio discursos dos direitos humanos é deslegitimado e os defensores de direitos humanos viram defensores de bandido.

A gente precisa combater essa simplificação que aconteceu nesse período, muito graças à mídia, a programas sensacionalistas, que sempre fizeram questão de falar da criminalidade, de acentuar essa dimensão, de criar um estigma de bandido.

Certos setores da direita também que sempre fizeram isso: "bandido bom é bandido morto"... são vários os lemas que vêm desde esse período, dos anos 80. Porque a ideia de direitos humanos vai muito além da condição carcerária ou das pessoas que vão presas porque combateram algum tipo de crime. Os direitos humanos envolvem várias garantias que nós devemos ter e de que nós precisamos desde que a gente nasce. Então, o direito à saúde, o direito à alimentação, o direito à água, o direito à educação, o direito à assistência social, o direito à Previdência Social, o direito ao trabalho, os direitos do trabalho, da nossa CLT, décimo terceiro, férias, essas coisas que ainda existem.

Isso tudo são direitos humanos. Então, reduzi-lo a "direitos de bandidos" é uma simplificação que busca retirar a ideia forte de direitos humanos, o potencial que os direitos humanos têm de nos ajudar a criar uma sociedade mais justa e mais igualitária. E é preciso frisar que quem está preso também tem direitos humanos. Porque direitos humanos não é defender impunidade: é defender que as pessoas respondam pelas infrações que elas cometeram de acordo com a lei e dentro do limite da lei. E não que elas sejam então torturadas, presas sem nenhum tipo de defesa, armazenadas nesses depósitos de gente, superlotados, que só fazem a pessoa se aprofundar na estrutura do crime e assim por diante, como vários estudos mostram.

O que se defende não é o crime que o bandido cometeu, mas a dignidade humana dessa pessoa como de qualquer outra que esteja em situação de vulnerabilidade.

Qual a importância de retomar o conceito de universalidade dos direitos humanos? 

Precisamos recuperar essa ideia forte da universalidade que marca o começo dos direitos humanos. A ideia de que todos nascemos iguais em direitos e dignidade perante a lei. É essa a ideia central, porque busca-e corrigir as desigualdades com essa ideia da universalidade. E é claro que essa universalidade foi uma promessa liberal nunca cumprida. Porque quem é pobre, negro e mora na periferia, não vai ter igualdade de oportunidades, não vai conseguir os mesmos bens culturais, ter acesso à riqueza material, à representatividade política e assim por diante.

A gente sabe que no capitalismo há certos limites para essa universalidade, pra essa igualdade formal, mas ela, ainda sim, é fundamental para conseguirmos avançar, mostrando que os direitos humanos estão na vida de cada um de nós. Todos nós dependemos destes direitos em vários momentos da nossa vida,  às vezes mais, às vezes menos, mas certamente todos nós já estivemos em situações em que a gente precisa dos direitos humanos, e que fazem uma diferença enorme caso não sejam garantidos. Então, a gente precisa mostrar que, no fundo, há uma igualdade fundamental entre todos os seres humanos  e que essa igualdade fundamental tem que ser respeitada. É uma igualdade formal, mas também material.

É preciso haver mecanismos que garantam, para além de uma universalidade abstrata, também uma universalidade concreta, para corrigir desigualdades históricas. Com ações afirmativas, por exemplo,  das mais diversas formas, ou outros tipos de correções materiais que precisam ser feitas para conseguir ter uma sociedade, de fato, justa e com uma igualdade de direitos entre todos e todas.

O que está por trás dessa repulsa aos defensores dos direitos humanos? 

É uma construção muito perversa -- que é um projeto político, na verdade, de se descartar os direitos humanos e de retirar o potencial emancipatório que os direitos humanos têm. Porque os direitos humanos, durante muito tempo, foram vistos pela direita como algo que deve ser desprezado, e uma parte da esquerda também demorou muito para entender a importância deles. Porque se entendia que os direitos humanos eram um interesse burguês, uma forma de dominação de classe, que escondia interesses de classe por trás.

Tem essa dimensão? Evidentemente que tem. A origem dos direitos humanos é intimamente ligada às revoluções burguesas, mas os direitos humanos foram mudando, se alterando e se ampliando, justamente pela luta dos trabalhadores, que exigiram direitos sociais, econômicos e culturais. Surgiram os direitos do meio ambiente e outros direitos que vários setores sociais como o Movimento LGBT, o Movimento de Mulheres, o Movimento Negro exigiram também escrever, na forma dos direitos humanos, suas reivindicações.

Então, os direitos humanos viraram uma gramática de emancipação muito importante no mundo de hoje. Mas, ao mesmo tempo, pelo fato de todo mundo reivindicar os direitos humanos e falar que os defende -- desde os ministros de governos conservadores até os movimentos sociais, os rebeldes contra um regime político, os que defendem o regime político, países que fazem guerras reivindicam direitos humanos, países que resistem às guerras, invasões e ocupações também falam em direitos humanos --, tornou-se uma expressão esvaziada.

É preciso a gente recuperar o sentido político de direitos humanos, e não essa visão apolítica, liberal, minimalista de direitos humanos. Mas um sentido forte, que nos permita usar esse discurso para poder fazer avançar as lutas políticas e sociais no sentido de maior igualdade e maior justiça, e combater essa estratégia perversa de estigmatização dos direitos humanos e de redução simplista a "direitos de bandido". Porque isso é uma bandeira dos setores da extrema direita, e eles conseguiram ganhar isso no debate público. É preciso agora, de fato, a gente reconstruir uma relação de valorização e de confiança nos direitos humanos perante à população. 

A Constituição de 1988 contempla a efetividade desses direitos? O que é necessário para além dela? 

A Constituição contempla muito positivamente, junto com os tratados internacionais que ela mesmo reconhece. Os direitos humanos não estão garantidos só dentro de cada país por uma legislação nacional. Eles estão garantidos pelo direito internacional, seja ele global ou regional, como o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.

O Brasil está vinculado à Comissão Interamericana, que esteve aqui apurando violações no mês passado, e à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Então, de alguma maneira, a Constituição contempla esses direitos em vários artigos.

O artigo 5º, sobretudo o artigo 6º, estabelem obrigações de direitos humanos para o Estado brasileiro. Não só limites para o Estado, para o Estado não invadir a esfera da intimidade, da privacidade, do devido processo legal, mas também prestações positivas do Estado. Ele precisa dar o direito à saúde, à moradia, os direitos do trabalho precisam ser assegurados, precisa ter fiscalização. Então, tudo isso está previsto na Constituição.

O grande desafio dos direitos humanos, desde 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, segue sendo a sua efetividade. É como dar concretude e fazer valer na prática esses direitos. Porque as garantias, boa parte delas, a gente conseguiu escrever na Constituição, no contexto da redemocratização.

As lutas sociais foram bastante intensas no fim dos anos 70 e começo dos 80, e culminaram com a Constituição de 88, que é elogiada, reconhecida no mundo todo como uma Constituição garantista. Porque, de fato, assegura os direitos humanos, estabelece obrigações para o Estado. O problema é que o Estado não cumpre adequadamente. Daí, o fato de o Brasil ser responsabilizado constantemente por vários casos de violação de direitos humanos, seja em relação aos crimes da ditadura que não foram apurados e responsabilizados, seja em relação ao nosso sistema penal, ou em relação a casos de trabalho análogo à escravidão. A gente tem vários casos internacionais em que o Brasil foi condenado. Então, a gente precisa lutar ainda, depois desses 70 anos de Declaração Universal, que é preciso dizer que é um tratado internacional, que tem natureza jurídica, que precisa ser cumprida. Nessa declaração, apesar de não ser originalmente e oficialmente isso, ela tem uma natureza muito forte que inspira essas legislações, e a gente precisa ainda lutar pela efetividade dela e da nossa Constituição. 

Quem são as maiores vítimas dessa não efetividade? Qual a perspectiva no próximo governo?

Quem mais precisa desses direitos são, de fato, as pessoas que vivem situações de privação, que são alvo de desigualdades estruturais de vários tipos -- tanto econômicas, quanto simbólicas. Então, pessoas que são das classes mais baixas, pessoas que não têm acesso ao mercado de trabalho, pessoas que são de grupos vulneráveis, como mulheres, negros, LGBTs, idosos, crianças, pessoas com deficiência. São grupos sociais vulneráveis e que dependem desse direito para ter uma dignidade mínima. 

Vivemos um momento de reação conservadora, porque as lutas pelos direitos humanos avançaram muito nestes 70 anos e, no caso brasileiro, nos últimos 30, 40 anos, com o fim da ditadura. As lutas sociais vão avançando e fazendo com que a gente consiga consagrar muitos direitos humanos na nossa lei, tornando direito no sentido mais forte do termo mesmo. Só que a gente ainda não conseguiu efetivar essas coisas e, às vezes, o próprio Judiciário foi dar a concretude a esses direitos. Então, o Judiciário que estabeleceu o direito, por exemplo, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, o direito às pessoas transexuais de fazerem alteração de prenome e sexo nos cartórios. Esses direitos construídos pelo Judiciário, que não têm uma lei no sentido formal, acabam sendo direitos mais precários e frágeis em um governo conservador como o que a gente está vendo. 

O fato de termos avançado tanto nesses 40 anos naturalmente gerou uma reação conservadora, e a gente precisa entender este momento em que vive no Brasil e no mundo, de ascensão da extrema direita justamente como um momento de ascensão e de reação conservadora às conquistas que os movimentos tiveram. A gente precisa ter essa dimensão de que, no fundo, esse retrocesso e essa reação conservadora são frutos da nossa luta. Talvez a nossa ingenuidade foi não ter entendido que, diante das transformações que as lutas progressistas estavam provocando no mundo todo, haveria uma reação na mesma intensidade. E não estávamos preparados para essa reação. 

O que vamos ter no Brasil, certamente, vão ser investidas contrárias aos direitos humanos por parte do governo. Algumas delas vão poder avançar, mas nosso papel vai ser resistir -- e resistir usando o Supremo Tribunal Federal [STF], que já disse que não vai aceitar retrocesso em direitos humanos fundamentais, a Procuradoria Geral da República e os órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos.

O Brasil não está isolado do mundo, e o governo do Bolsonaro não é um governo de uma pessoa só. O sistema político brasileiro tem outras instâncias e outras possibilidades de questionamento das medidas de governo, porque ainda não é uma ditadura, e não tem que ser uma ditadura, pela Constituição de 88 -- enquanto ela ainda vigorar. 

Nas pautas que a gente avançou, especificamente em relação aos LGBTs e às mulheres, qual é precisamente o risco?

Ainda é cedo para dizer se corremos riscos e qual o grau desse risco. Porque todo direito, por definição, é precário. Ele é uma construção que reflete uma correlação de forças da politica. Não tem direito eterno e imutável. O direito vai ser alterado, inclusive porque a dinâmica histórica muda, as pessoas mudam. Os grupos sociais disputam poder e imprimem suas características e seus interesses também no direito. Então, ele muda, mas é importante ter claro que essas garantias são fundamentais e que estão asseguradas na nossa legislação interna e nos tratados internacionais também.

É preciso, de alguma maneira, buscar proteger essas garantias, porque sem dúvida nenhuma o estrago está feito. O que o "bolsonarismo" poderia trazer de pior aos direitos humanos já está feito, que é contaminar o debate público e impedir que essas pautas avancem e que a gente consiga racionalizar esse debate e mostrar a importância dos direitos humanos. Porque é um governo que irradia e repercute visões simplificadoras e empobrecidas sobre direitos humanos. Então, dá um outro grau de legitimidade para esse discurso conservador.

Esse estrago no debate público está feito, e a gente vai demorar para conseguir recompor essa possibilidade de debate, de um diálogo com a sociedade sobre direitos humanos. Agora, do ponto de vista institucional, acho que ainda é cedo e que é preciso também que a gente tenha uma postura bastante combativa, de resistência e de altivez, sabendo que o que a gente está defendendo não é uma coisa da nossa cabeça. São direitos que estão assegurados na lei em vários outros lugares do mundo, inclusive, por organismos internacionais.

Uma das estratégias do bolsonarismo é criar subjetividades que estão acuadas, amedrontadas, que estão achando que tudo vai acabar, que vai mudar tudo, e não é bem assim.  Haverá muito espaço de disputa e de resistência para a rearticulação de uma posição forte também na defesa comprometida com os direitos humanos. 

 

Edição: Daniel Giovanaz