Há 200 dias, a capital do Paraná se transformou em um espaço de disputa, que coloca frente a frente dois projetos de país. De um lado, a “República de Curitiba”, que enaltece as investigações da Operação Lava Jato, apesar das violações à Constituição Federal. De outro, a “capital da resistência”, que denuncia a partidarização e os abusos do sistema judiciário brasileiro.
Geograficamente, a disputa política se materializou no bairro Santa Cândida, região norte de Curitiba, onde está localizada a Superintendência da Polícia Federal. Naquele prédio, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi preso, na noite de 7 de abril, após determinação do juiz Sérgio Moro, responsável pelos processos da Operação Lava Jato.
Desde então, militantes contrários à prisão do ex-presidente iniciaram a Vigília Lula Livre, um espaço de mobilização e denúncia permanente.
“Esses 200 dias têm significado o que é o Judiciário, toda a farsa e tudo que está em jogo. Deixar [Lula] preso por 200 dias e não ter apresentado uma única prova concreta contra ele mostra mais uma das faces do que é o golpe de Estado no Brasil”, afirma Neudicleia de Oliveira, integrante da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
Neudicleia participa do setor de comunicação da Vigília Lula Livre desde o dia 7 de abril. Para ela, a mobilização diária que acontece na Vigília não é só um movimento em defesa da liberdade do ex-presidente Lula, mas também uma experiência importante de organização social e resistência política.
“A Vigília foi se dando em diversos passos. No primeiro momento, foi a ascensão e revolta das massas. Agora, é um movimento mais organizado. Então, também nos obrigou a pensar estratégias de como manter uma vigília, desde mobilização de povo até as condições de mantê-lo aqui”, explica.
Nos primeiros dias após a prisão de Lula, a Vigília Lula Livre tomou as ruas próximas ao prédio da PF. No entanto, um interdito proibitório movido pela Prefeitura de Curitiba restringia a livre circulação de manifestantes pelo local. Além disso, o juiz Jailton Juan Carlos Tontini, da 3ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba, estipulou o pagamento de multa no valor de R$ 500 mil por dia, em caso de descumprimento do interdito. Após disputas judiciais, a Vigília Lula Livre foi fixada em um terreno alugado em frente à Superintendência da PF, no dia 16 de julho.
O espírito de resistência da Vigília se espalhou pelas ruas do bairro Santa Cândida: outro terreno, a menos de 100 metros da PF, abriga o Centro de Formação e Cultura Marielle Vive e a cozinha comunitária, que alimenta os frequentadores da Vigília; duas quadras abaixo, está a Casa da Democracia, de onde é transmitida diariamente a Rede Lula Livre.
Em agradecimento à solidariedade dos moradores da região, militantes da Vigília Lula Livre criaram o "bosque da solidariedade", onde já plantaram mais de 100 árvores.
“A gente consegue tanto dialogar com a sociedade aqui ao redor do Santa Cândida, com esses espaços, com essa organização, e também consegue fazer momentos de estudo, de formação política para os nossos militantes e para os companheiros que vêm de fora a conhecer a Vigília”, explica Tarcísio Leopoldo, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Paraná.
Divisor de águas
Para Neudicleia de Oliveira, a mobilização mantida no bairro Santa Cândida defende uma pauta ampla, de apoio a um projeto político popular e pela manutenção da democracia no país.
“É preciso ter essa resistência, porque nós estamos vivendo um divisor de águas no Brasil. Principalmente, com essa grande ofensiva da direita. E não é só a direita, é o fascismo se instaurando”, diz.
O repórter fotográfico Joka Madruga, que registra imagens da Vigília Lula Livre desde o dia 7 de abril, também entende que a militância que frequenta a Vigília agregou novas pautas à sua mobilização inicial, de denúncia da prisão política do ex-presidente Lula.
“Eu acredito que a militância mantém o foco na questão da luta pela democracia, na luta pelos direitos, mas não esquece do Judiciário. As críticas ao Judiciário continuam e continuarão”, afirma. Na visão do repórter, o sistema judiciário cumpriu “papel fundamental na fragilização da democracia brasileira”, e o que está em jogo, a poucos dias do segundo turno das eleições, é a “defesa da democracia ou a entrada no período mais assombroso da história do país”.
Para Joka, a mobilização política que tem acontecido em Curitiba desde a prisão de Lula marcará as páginas dos livros de História nas próximas décadas.
“Daqui 50, 100 anos, isso aqui vai estar registrado nos livros de História e as nossas fotos estarão ilustrando esse material, mostrando esse momento triste, mas importante na luta por igualdade, democracia, justiça social e pelos direitos humanos. A Vigília é uma síntese de tudo isso”, finaliza.
Histórico
Desde 7 de abril, a Vigília Lula Livre mantém uma programação diária, com saudações de “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite” ao ex-presidente Lula, rodas de conversa sobre temas relacionados à política e atividades culturais.
Nesses 200 dias, já passaram pela Vigília artistas como Chico César, Ana Cañas, Lucélia Santos, Orã Figueiredo, e personalidades como a chef de cozinha Bel Coelho e a apresentadora Bela Gil. A Vigília também recebeu intelectuais como o teólogo Leonardo Boff, o Prêmio Nobel da Paz Adolfo Perez Esquivel, o linguista Noam Chomsky, e a médica popular cubana Aleida Guevara.
O livro de visitas, que foi aberto em maio, reúne mais de 8 mil assinaturas, de pessoas de diferentes estados brasileiros e países como Chile, Argentina, Paraguai, Itália e França. A organização, composta por movimentos sociais que fazem parte da Frente Brasil Popular, estima que já circularam pela Vigília mais de 40 mil pessoas.
Edição: Daniel Giovanaz