Paraná

Censura?

Ex-Lava Jato que prendeu reitor em SC já processou jornal, blogueiro e até o Facebook

Érika Mialik Marena chegou a processar criminalmente o jornalista Marcelo Auler por injúria, calúnia e difamação

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
Delegada foi transferida para Florianópolis no final do ano passado
Delegada foi transferida para Florianópolis no final do ano passado - Divulgação Abracam

Há duas semanas, a morte do reitor afastado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier, reacendeu a polêmica sobre possíveis abusos do Poder Judiciário e da Polícia Federal (PF) no combate à corrupção. Cancellier, conhecido como Cau, foi preso em 14 de setembro, solto no dia seguinte e afastado do cargo sob a acusação de obstrução da justiça – a operação Ouvidos Moucos, da PF, apura supostos desvios nos programas de ensino a distância. No bilhete deixado no bolso da calça, o ex-professor de Direito da UFSC indicou a motivação do suicídio: “Minha morte foi decretada quando fui banido da universidade”. O cadáver foi encontrado no piso térreo de um shopping center, após cair de uma altura de sete andares.

Entre 15 de setembro e 2 de outubro, Cau foi impedido de circular na universidade por mais de três horas. A mega operação mobilizou 105 policiais federais para prender sete pessoas. Segundo o colunista do jornal Notícias do Dia, Carlos Damião, o então reitor ficou traumatizado com a abordagem policial: assim que chegou ao presídio da Agronômica, em Florianópolis, Luiz Carlos Cancellier – que não havia sequer respondido a processo, nem era réu na operação – foi despido e teve as partes íntimas revistadas, como qualquer outro detento.

A delegada responsável pelo pedido de prisão, Érika Mialik Marena, trabalhou até dezembro do ano passado na operação Lava Jato. Essa coincidência permite estabelecer uma ponte entre os dois casos e ampliar a discussão sobre os limites da atuação do Estado na investigação de condutas criminosas.

O Brasil de Fato Paraná produziu esta reportagem sobre a trajetória e o perfil profissional da delegada, peça-chave nas operações Lava Jato e Ouvidos Moucos, a partir da sugestão de leitores. Em tempos de polarização, o desconhecimento pode levar a julgamentos precipitados e a manifestações de ódio e intolerância. O acesso à informação, por outro lado, qualifica a crítica e agrega elementos para o debate.

Currículo

Érika Mialik Marena nasceu em Apucarana, a 370 km de Curitiba, e saiu de casa para estudar aos 17 anos. Filha de um historiador e de uma ex-funcionária do Instituto de Previdência do Estado – e neta do pastor Mialik, referência da igreja Assembleia de Deus na região –, ela ingressou no curso de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 1993.

Depois da formatura, em 1998, Marena atuou como técnica da Justiça Eleitoral e procuradora do Banco Central, entre 2002 e 2003. Naquele ano, ingressou na PF em São Paulo para trabalhar na Delegacia de Crimes Financeiros. Em 2004, voltou a Curitiba e integrou por três anos a força-tarefa do caso Banestado.

No período que antecedeu a Lava Jato, a delegada participou do Grupo de Repressão a Crimes Financeiros e da Delegacia de Repressão a Crimes Fazendários, e deu aulas na Academia Nacional de Polícia, na disciplina Lavagem de Dinheiro. Após dois anos de trabalho na Lava Jato em Curitiba – durante os quais chegou a coordenar a operação –, Marena foi transferida a Florianópolis no final de 2016 para trabalhar na Delegacia de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro.

Elogios

O avanço das investigações projetou o nome da delegada nos meios de comunicação brasileiros, quase sempre de maneira elogiosa. Mais de uma vez, Érika Mialik Marena foi chamada pela imprensa de “mãe da Lava Jato” – foi ela quem batizou a operação, em referência a uma rede de postos de combustíveis usada para movimentar dinheiro ilícito, conforme descrito um dos primeiros inquéritos.

Com o moral elevado, a apucaranense foi a mais votada entre os colegas para assumir a direção-geral da PF no Brasil. A candidatura dela foi apoiada pelo procurador Deltan Dallagnol, entre outros membros do Ministério Público Federal (MPF) em Curitiba, mas Michel Temer (PMDB) preferiu manter o atual diretor, Leandro Daiello.

Em março do ano passado, a delegada foi condecorada no Dia Internacional da Mulher com o prêmio “Mulheres que Inspiram”, na categoria Segurança Pública. Logo, passou a ser convidada para eventos dentro e fora do Paraná, para compartilhar com juristas e empresários a experiência acumulada na Lava Jato.

No longa-metragem “Polícia Federal: a Lei é Para Todos” (Downtown Filmes, 2017), Marena inspirou a personagem Beatriz – interpretada por Flávia Alessandra, atriz da Rede Globo –, uma das protagonistas do filme que conta a história da Lava Jato sob a ótica dos investigadores.

Polêmicas

Os primeiros questionamentos à postura da delegada paranaense começaram em 2014, no contexto das eleições presidenciais. Uma matéria do jornal O Estado de S. Paulo, em novembro daquele ano, reproduziu uma breve postagem de Marena no Facebook, sob o codinome Herycka Herycka: “Dispara venda de fraldas em Brasília”.

A publicação foi interpretada pela repórter Julia Dualibi como resposta ao depoimento de Paulo Roberto Costa, ex-diretor de Abastecimento da Petrobrás, que acusava o PT de receber 3% dos contratos superfaturados da estatal. Marena não deixou barato: entrou com uma ação na 9ª Vara Cível de Curitiba para tirar a reportagem do ar e pediu R$ 70.000,00 de indenização.

No ano seguinte, a empresa Facebook Brasil foi alvo de uma nova ação, desta vez junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A “mãe da Lava Jato” pedia a imediata retirada do ar de “todo o conteúdo ofensivo, correlato à denominada operação [Lava Jato] que vincule o autor, sob pena de multa diária de R$ 500,00 por dia de descumprimento, até o limite de R$ 50.000,00”.

Marena também exigiu do Facebook a quebra do sigilo dos dados cadastrais e o acesso aos perfis que veiculavam as postagens consideradas ofensivas, além do e-mail, telefone e nomes dos usuários responsáveis por páginas e blogs que reproduziram aquele conteúdo.

Mais processos

Em março 2016, sobrou para o jornalista Marcelo Auler, que teve duas reportagens críticas à Lava Jato censuradas em seu blog: "Novo ministro Eugenio Aragão brigou contra a foi vítima de vazamentos" [16/03/2016] e "Carta aberta ao ministro Eugenio Aragão" [22/03/2016]. Segundo Auler, a delegada Marena obteve a censura através do 8º Juizado Especial Cível, em Curitiba. A ação está em aberto, e as testemunhas de defesa do jornalista serão ouvidas em Brasília no dia 5 de dezembro.

Marcelo Auler acrescenta que Marena move outras duas ações contra ele. Em uma delas, a delegada pede uma indenização de R$ 100.000,00 contra o blogueiro e a Carta Capital, além da censura ao blog da revista – o jornalista ainda não foi citado nesta ação. A terceira é uma queixa crime por injúria, calúnia e difamação, em que Auler foi citado no último dia 6, e que será julgada na 10ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro. 

Após a morte de Luiz Carlos Cancellier, o volume de críticas ao trabalho dela multiplicou-se rapidamente – o ex-reitor chegou a ser descrito como “o primeiro cadáver do lavajatismo”. “Estado policialesco” também se tornou um jargão, cada vez mais repetido, para desqualificar o trabalho da delegada paranaense. Logo ela, conhecida por tentar barrar qualquer conteúdo que prejudicasse sua reputação.

Até hoje, Marena não se manifestou sobre o suicídio de Cancellier. Mas, se quiser manter a postura de contra-ataque, a cada questionamento publicado nas redes, não lhe faltam oportunidades para abrir novos processos.

Lava Jato e Banestado

O caso Banestado, em que Érika Mialik Marena atuou nos anos 2000, investigou o envio ilegal de 124 bilhões de dólares ao exterior – ou R$ 390 bilhões, no câmbio atual. Porém, resultou em menos condenações que a Lava Jato: 97 a 165.

Nos dois casos, a PF reuniu indícios de crimes cometidos por grandes grupos empresariais, operadores financeiros e políticos. Curiosamente, os réus que eram considerados os “cabeças” do esquema, como o doleiro Alberto Youssef, colaboraram com as investigações e foram soltos.

Além de Youssef e da delegada Marena, outros quatro personagens da Lava Jato têm sua biografia relacionada ao caso Banestado: o juiz de primeira instância Sérgio Moro e os procuradores Carlos Fernando dos Santos Lima, Januario Paludo e Orlando Martello Junior.

Este conteúdo faz parte da cobertura especial do Brasil de Fato sobre a operação Lava Jato. Clique aqui para ter acesso a outros materiais sobre o tema.

Edição: Ednubia Ghisi