Nenhuma investigação sobre condutas criminosas firmou tantos acordos de delação premiada no Brasil quanto a operação Lava Jato. Da noite para o dia, o termo se tornou comum nos noticiários e em rodas de conversa, e a população não demorou a entender como funciona o jogo.
A delação premiada nada mais é que uma negociação entre Estado e réu. O Estado prevê um acordo e oferece benefícios, como a redução ou a isenção da pena. Em troca, o réu assume que cometeu um ou mais delitos e fornece indícios que ajudam a demonstrar a participação de terceiros em um crime.
Na Lava Jato, os delatores têm recebido benefícios maiores do que o previsto em lei, o que causa um desequilíbrio na negociação e pode estimular cooperações falsas. Essa foi uma das conclusões do pesquisador Thiago Bottino, membro da Comissão Permanente de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), em artigo publicado pela Revista Brasileira de Ciências Criminais no final de 2016.
Desequilíbrio
Bottino analisou os acordos de colaboração premiada firmados entre o Ministério Público Federal (MPF) e três investigados, entre agosto e novembro de 2014: Paulo Roberto Costa, ex-diretor de abastecimento da Petrobras, Pedro Barusco Filho, ex-gerente da estatal, e o doleiro Alberto Youssef. Os três casos tiveram ampla repercussão midiática, deram legitimidade à operação e forneceram as bases para os demais acordos no âmbito da Lava Jato.
As considerações finais de Thiago Bottino, expressas no infográfico acima, são uma espécie de alerta. “Os exemplos de acordos examinados, que excedem em muito os benefícios previstos em lei, oferecem incentivos exagerados, cuja legalidade pode até ser questionada”, afirma. “Juízes deveriam, no ato de homologação, atentar para essas inconformidades legais e suas possíveis consequências, para assegurar a plena eficácia do instituto, dada a potencialidade que (...) têm de levar a cooperações falsas ou redundantes”.
Além de uma adequação dos benefícios, o autor propõe que as declarações prestadas pelos investigados deixem de ser consideradas provas, mas sim, meios de investigação. O argumento é simples: para um réu condenado em primeira instância, pode parecer vantajoso prestar informações, mesmo que falsas, para conquistar alguns anos de liberdade – afinal, diante de uma pena que já é alta, ele não teria “nada a perder”.
O que diz a lei
A delação premiada foi incluída pela primeira vez na legislação brasileira em 1990 na Lei nº 8.072, conhecida como Lei dos Crimes Hediondos. O artigo 8º afirma que “o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”.
Em 23 anos, a legislação foi alterada sete vezes. O que muda, basicamente, são normas que condicionam a redução de pena à natureza dos crimes denunciados.
A alteração mais relevante aconteceu em agosto de 2013, quando a então presidenta Dilma Rousseff (PT) sancionou a Lei 12.850. Ela prevê que a negociação dos termos da delação se dê entre o delegado, o investigado e o advogado de defesa, ou entre o MPF e o investigado e seu advogado.
“Um dos requisitos exigíveis [na Lei 12.850] é (...) a distância do juiz, a fim de garantir a imparcialidade nas “negociações”, conferindo a ele uma passividade ou mesmo restrições no seu papel de garantidor”, analisa a professora Soraia da Rosa Mendes, em editorial publicado este ano pela Revista Brasileira de Direito Processual Penal. “Isso pode resultar em uma relativização dos direitos e garantias fundamentais que permeiam a pretensão punitiva e acabar por justificar ilegítimas prisões preventivas”, acrescenta.
A análise de Thiago Bottino encontra respaldo no 16º parágrafo do artigo 4º daquela lei, segundo o qual “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”. Ou seja, a informação prestada por um delator, por si só, não pode ser considerada prova.
A diferença entre delação e colaboração
Delação premiada e colaboração premiada costumam ser tratadas como sinônimos, mas têm significados diferentes.
Se um réu ajudar a localizar e a recuperar certa quantia de dinheiro desviada da corrupção, por exemplo, sem nomear os corruptos ou corruptores, isso não configura uma delação, mas uma colaboração. Delação premiada é, portanto, um tipo de colaboração.
Outra prática comum na operação Lava Jato são os acordos de leniência, firmados pelo MPF junto a pessoas jurídicas. Ao firmar esse acordo, a empresa paga uma multa para ser “perdoada” nos processos em que está envolvida.
O caso Lula
A condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em primeira instância no “caso triplex” foi considerada, por vários juristas, uma “aberração”. É o que denuncia o livro “Comentários a uma sentença anunciada: o caso Lula”, lançado no último dia 11.
A obra foi editada sob a coordenação de três professoras de Direito da UFRJ, PUC-Rio e Unila, Carol Proner, Gisele Cittadino e Gisele Ricobom, e reúne artigos de 100 advogados. A crítica mais recorrente à sentença do juiz Sérgio Moro foi o peso dado às declarações de Leo Pinheiro, um dos sócios da empreiteira OAS.
O ex-presidente Lula foi condenado em primeira instância a nove anos e meio de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O petista é acusado de ocultar a propriedade de um apartamento triplex no Guarujá, litoral paulista. O imóvel teria sido pago como parte da propina recebida pela OAS, em troca de favorecimento em contratos com a Petrobras.
Os juristas que produziram o livro afirmam que Sérgio Moro apostou na hipótese de ocultação de patrimônio justamente porque não havia provas documentais de que o imóvel pertencia ou seria destinado a Lula. O principal indício, apresentado na sentença condenatória, é o depoimento do delator Leo Pinheiro, condenado a 26 anos e sete meses de prisão, que propôs uma redução de pena em dois terços para confirmar aquela informação.
O Brasil de Fato Paraná acompanhou a coletiva de imprensa do ex-presidente Lula em São Paulo, um dia após a condenação. Na ocasião, o petista voltou a criticar o método de obtenção de provas na Lava Jato: “O cara assiste na TV que vale a pena delatar, que delatar é um prêmio, para poder conviver com a riqueza que roubou. Aí aparece gente morando em condomínio de luxo, perto da praia... e o cara que está preso fala: ‘pô, eu estou condenado a 26 anos de cadeia, e tudo que eu tenho que falar [para diminuir a pena] é que o Lula sabia’?”, ironizou. “‘Por que é que eu vou pegar tanto tempo de cadeia por causa do Lula?’ Assim foi com o Léo, assim foi com outros”, lamentou.
Luxo e perdão
Paulo Roberto Costa e Pedro Barusco Filho conseguiram autorização para cumprir a maior parte da pena em apartamentos de luxo, no Rio de Janeiro. Réu e delator nos casos Banestado e Lava Jato, Alberto Youssef foi condenado, ao todo, a 121 anos de prisão. Com a pena reduzida em três quartos, o doleiro deixou a cadeia após as duas delações, e vive em um condomínio luxuoso em São Paulo.
O advogado Rubens Rodrigues Francisco, diretor jurídico da Associação Nacional de Defesa e Amparo às Vítimas de Abuso de Poder (Provitimas), também critica os benefícios “exagerados” concedidos aos delatores na Lava Jato. Além de violar a legislação brasileira, segundo ele, a Lava Jato ameaça o tratado internacional firmado na Convenção Americana de Direitos Humanos em San José, na Costa Rica, em 1969.
“O Pacto de San José veda a produção de provas contra o próprio réu. E a delação premiada é justamente isso”, disse. “O indivíduo produz provas contra ele mesmo na certeza de que não vai ser punido, mas premiado. A ideia original era a diminuição de pena. Agora, ele não tem sanção nenhuma, ainda sai com dinheiro do país e prejudica outros réus”.
Até o fechamento desta reportagem, a Lava Jato firmou 158 acordos de colaboração com pessoas físicas. A maior parte dos delatores, cerca de 52%, são diretores ou executivos de grandes corporações.
Este material faz parte da cobertura especial da operação Lava Jato. Clique aqui para ter acesso a mais reportagens sobre o tema.
Edição: Ednubia Ghisi