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Perfil | Tonhão, Gazio e Antônio: três faces de um amigo das crianças

Ex-diretor do Centro Social Casa do Piá comenta os avanços do Estatuto da Criança e do Adolescente, que celebra 27 anos

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
Antônio Carlos Rocha, 58 anos, sempre colocou o diálogo à frente das regras e da disciplina inflexível no contato com crianças
Antônio Carlos Rocha, 58 anos, sempre colocou o diálogo à frente das regras e da disciplina inflexível no contato com crianças - Carolina Goetten

Aos 58 anos de idade, Antônio Carlos Rocha traz consigo um acervo de memórias e de identificação com os meninos em situação de rua. Aos dez, experimentou drogas pela primeira vez; aos 18, deixou de usá-las em definitivo, quando passou a morar em uma casa de recuperação. “Depois que me recuperei, retornei ao espaço para contribuir com outras pessoas. Ali, aprendi muitas coisas sobre como deixar essas condições para trás”, conta o pedagogo.

Como diretor do Centro Social Casa do Piá, em Curitiba, Rocha colocou o diálogo à frente das regras e da disciplina inflexível. “Quando passamos a permitir que eles brincassem mais, percebemos mudanças significativas e resultados que perduram até hoje: eles passaram a ter mais vontade de permanecer no espaço, em vez de passar o dia todo fora”, define Tonhão, com ficou conhecido na Casa. Em sua sala, durante todo o dia, os pequenos se apinhavam para colocar suas ponderações, críticas e sugestões a um diretor que sabia escutá-los.

Foi a partir da sensibilidade característica de quem já passou muito tempo pelas ruas que Rocha percebeu o que outros educadores não viam: muitos dos garotos acolhidos deixavam a casa logo pela manhã, porque a televisão era obrigatoriamente desligada às 8h. Tonhão percebeu que, nas horas seguintes, muitos seguiam ao centro da cidade e se aglomeravam em frente às lojas da rua XV de Novembro para assistir ao programa da Xuxa. Pela primeira vez, flexibilizou uma regra na casa: as crianças não precisariam retornar às ruas para ver televisão e os aparelhos seriam desligados um pouco mais tarde. “Eles queriam jogar bola, ter momentos para se divertir. Eram crianças como todas as outras”, recorda.

Até hoje, Rocha preserva o contato com muitos meninos que acolheu – todos, agora, adultos. Desde aquela época, mantém o mesmo número de telefone, para que sempre possa ser encontrado por quem já precisou dele um dia.

Homicídio é coisa de adulto

Uma recente estimativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância indica que apenas 2,8% dos homicídios registrados no país são cometidos por menores. É nesse contexto em que Tonhão atuou durante anos em sua carreira de atenção com as crianças e adolescentes. Graduado em Pedagogia pela Universidade Federal do Paraná, traz no currículo uma formação quase completa em Filosofia e uma história de superação rara entre jovens que enfrentam condições tão difíceis.

A gravidade das situações vividas por meninos de rua se revelam nas histórias apinhadas entre as lembranças de Rocha – tanto as que acompanhou enquanto diretor, quanto as que viveu pelas ruas da cidade durante a adolescência. Numa relação simbiótica com as crianças de que cuidava, pôde escutar e perceber suas necessidades. Um dos garotos mais presentes em sua memória, conhecido como Ferrugem (é comum que as crianças em situação de rua se reconheçam mais pelo apelido do que pelo nome de batismo), sugeriu, a partir de sua própria leitura dos contextos ao redor, uma ideia que fazia todo o sentido. “O Ferrugem me olhou e disse: ‘o que vocês têm na cabeça? Deixa que eu respondo. Vocês têm merda! Querem que a gente se sinta em casa nesse casarão que mais parece uma cadeia’. Era, mesmo, uma péssima estrutura, nada acolhedora. Depois, ele apontou para uma casa da rua e disse: ‘por que vocês não escolhem uma dessas pra gente?’”. O garoto comentou sua sugestão em 1993; anos depois, em 2009, essa necessidade sentida por Ferrugem tornou-se norma regulamentada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente: espaços de acolhimento das crianças devem ser implementados em ambientes familiares, que transmitam a sensação mais próxima possível de um lar, doce lar.

“Muitos garotos não querem estar aqui, mas saem de suas casas porque não têm alimento e sentem fome”, exemplifica Rocha. Um dos garotos com quem conviveu disse que voltaria para a casa da família sob a condição de que sua mãe recebesse uma cesta básica todos os meses. “O abrigo tinha toda a estrutura: roupas, higiene, comida deliciosa. Mas o fato de ele não ter alimento em casa fazia com que fosse para as ruas, muitas vezes para retornar com algo que a família pudesse comer. Com o tempo, ficam fora mais e mais, até que não retornam”, explica  Rocha. Esse garoto, por exemplo – cumprida a exigência da cesta básica – nunca mais voltou às ruas nem à casa de acolhimento. Voltou a morar com a família numa estrutura cheia de simplicidade, que dividia com mais cinco irmãos. "A ideia não é institucionalizar crianças por qualquer motivo. A prioridade é que permaneçam junto a seus pais e irmãos". 

Outra dura memória, que comove Tonhão sempre que se vê outra vez diante dela, é a lembrança de Gilmar, ou Gaguinho. Em 1993, junto ao amigo Vanderlei, que também morava na Casa do Piá, chegou da rua pouco depois das 21h. Naquela época, as regras do local não permitiam a entrada dos jovens que chegassem após esse horário, ou sob efeito evidente de drogas ou álcool. Decidiram voltar ao centro em posse de uma sacola cheia de cola de sapateiro. “No dia anterior, tentei tirar esse saco dele. O Gaguinho correu, correu, correu e entrou dentro do Rio Belém. Ria muito e disse que, se eu quisesse, eu deveria ir lá buscar. ‘Vem aqui pegar, pai!’. Ele me chamava de pai, e eu dizia:  ‘Não sou seu pai’. Eu não ia entrar naquele rio imundo!”.

Por volta da meia noite, como para fazer pirraça, tiveram a ideia de retornar à casa e “encher o saco” dos educadores para tentar dormir por lá. Voltaram de carona num caminhão sem avisar o motorista – Vanderlei atrás e o Gaguinho acima da carreta. “Assim foram, até que o caminhão passou por uma ponte com uma carga à frente. A carga passou, e o Gilmar não”, lembra Tonhão, mais abalado agora do que em qualquer outro momento da conversa. Foi ele quem esteve no IML para reconhecer o que restou do corpo de Gaguinho, que se tornou sonho e transcendência. 

Depois disso, Rocha flexibilizou mais uma regra na casa: os garotos nunca mais seriam barrados, independente de quando ou como chegassem. Gaguinho, onde quer que esteja, conquistou um direito para as crianças com que vivia e a homenagem eternizada num poema de Tonhão: “Fui filho dessa terra / dessa terra que não me viu / [...] brinco nas estrelas da minha nova vivência, / nas estrelas de minha nova existência”.                                                                                            

27 anos de ECA

De acordo com suas próprias diretrizes, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ainda é jovem: nesta quinta-feira, 13 de julho, o marco legal completa 27 anos no papel de regulamentar direitos dos brasileiros com idade até 18 anos. O ECA foi criado com intenção de proteger crianças e adolescência em situação de vulnerabilidade, como o pequeno Gazio, um dos maiores gazeadores de aulas em Curitiba. Hoje, Gazio é reconhecido pelo nome de batismo – Antônio Carlos Rocha – e pela atuação com afeto, carinho e respaldo junto aos meninos de rua da cidade.

“Quando até então os pequenos eram tratados como 'coisas' na legislação, de modo impessoal, o ECA trouxe a ideia de que criança é criança, e que precisa ser respeitada como tal”, explica Rocha, pedagogo e servidor público municipal. “O estatuto se baseia em definições da ONU e suas regras gerais para a administração da justiça aos menores”. Rocha avalia, porém, que a ampla audiência do ex-apresentador de televisão Luiz Carlos Alborghetti e suas máximas de sabedoria mínima (como “bandido bom é bandido morto” e que “a ECA é o estatuto do ladrão”) é um dos motivos pelos quais a população brasileira carrega uma interpretação equivocada sobre o marco legal. “O ECA foi promulgado, mas pouco efetivado. Ainda é preciso buscar uma implementação mais rigorosa. Deve-se ter em mente o princípio fundamental de que a criança e o adolescente têm prioridade absoluta de cuidados”, complementa.

Edição: Ednubia Ghisi